Exemplo de uma crônica literária (excelente)
Miscelânea / / July 04, 2021
Crônica literária
O crônica literária é um gênero narrativo contemporâneo, produto da aproximação entre o jornalismo e literatura, em que são oferecidos ao leitor episódios reais (ou imaginários, mas enquadrados em contextos reais) narrados usando as ferramentas e recursos literários.
A crônica literária costuma ser considerada um gênero de difícil definição, que mistura ficção e realidade à vontade, os pontos de visão e dados de pesquisa, com o objetivo de oferecer ao leitor uma reconstrução muito próxima da experiência vivida pelo Autor.
Nesse sentido, o cronista mexicano Juan Villoro o define como "o ornitorrinco da prosa", pois possui, como o animal, características de diferentes espécies.
Características da crônica literária
Embora seja complexo fixar as características de um gênero tão diverso, a crônica costuma ser vista como uma narrativa simples, com um forte tom pessoal, em que um contexto histórico ou cronológico é oferecido como um quadro para os eventos narrado.
Ao contrário da crônica jornalística ou jornalístico-literária, em que se cuida da fidelidade aos fatos verdadeiros, a crônica literária contribui
descrições subjetivas que permitem que você transmita suas percepções pessoais.Em alguns casos, como em Crônica de uma Morte Anunciada por Gabriel García Márquez ou em Martian Chronicles De Ray Bradbury, este contexto serve mais como uma desculpa para explorar eventos inteiramente fictícios. Outras abordagens, como as de Gay Talese ou da ucraniana ganhadora do Prêmio Nobel Svetlana Aleksievich, perseguir um efeito mais jornalístico, apegando-se às vidas de personagens reais ou eventos verificáveis do história.
Exemplo de crônica literária
"Uma visita à cidade de Cortázar" por Miguel Ángel Perrura
Depois de ler tanto Cortázar, Buenos Aires se torna conhecida. Ou pelo menos uma espécie de Buenos Aires: à francesa, cafés, livrarias e passagens, com toda a magia que este autor argentino lhe imprimiu do exílio.
E é que Cortázar optou pela nacionalidade francesa em 1981, em protesto contra a ditadura militar que assolou seu país, da qual havia saído, em desacordo com o peronismo, décadas antes. Indiscutivelmente, despojado da presença real de sua cidade, o autor de Amarelinha Procedeu precisamente a criar a sua própria cidade, a partir da memória, da saudade e da leitura. É por isso que seus personagens nunca falaram como a Buenos Aires contemporânea, à qual voltou em 1983 quando a democracia voltou, mas sim como aquela remota Buenos Aires que ele havia deixado para trás quando novo.
Para um leitor Cortázar como eu, espanhol de nascimento, Buenos Aires tinha aquela aura mágica e paradoxal da vida real. Claro que não, ou não exatamente. A capital argentina é, certamente, uma cidade encantadora, de cafés e corredores, de livrarias e tendas.
Eu verifiquei quando pisei pela primeira vez em 2016. Eu estava saindo de férias muito curtas, por apenas três dias, mas tinha uma missão secreta dentro de mim: reconstruir a cidade de Cortázar enquanto eu caminhava por ela. Queria pisar nos mesmos lugares que o cronópio, queria tomar os mesmos cafés que ele tomava e olhar a rua com os olhos, me guiando em seu maravilhoso trabalho. Mas é claro que nem tudo sai como seria de se esperar.
O tráfego entre o aeroporto e a cidade era sombrio, à meia-noite, apesar das luzes em todos os lugares. Do avião, ele vira a cidade como um retábulo de luz, uma grade brilhante que irrompeu na vasta escuridão dos Pampas. Eu poderia ter dormido a maior parte do caminho, vítima do Jet lagSe não fosse porque corria o risco de acordar, como o protagonista de "The night face up" em algum outro lugar, e sentir saudades da minha chegada à capital sul-americana.
Saí do táxi às duas da manhã. O hotel, localizado em Callao e Santa Fé, parecia tranquilo, mas lotado, como se ninguém soubesse, apesar da hora em que ele deveria dormir. Uma cidade alucinante e insone, muito sintonizada com a obra de Cortázar, pródiga nas noites sem dormir. A arquitetura ao meu redor parecia arrancada da Europa que eu tinha deixado em casa doze horas atrás. Entrei no hotel e me preparei para dormir.
O primeiro dia
Acordei com o barulho do trânsito às dez da manhã. Eu havia perdido meus primeiros raios de sol e precisava me apressar se quisesse aproveitar os dias sombrios de inverno. Meu roteiro rigoroso incluía o café Ouro Preto, onde dizem que Cortázar certa vez recebeu um buquê de flores - não sei quais - depois de participar de uma carambola numa demonstração. É uma bela história contida em Cortázar por Buenos Aires, Buenos Aires por Cortázar por Diego Tomasi quando tivermos a informação.
Queria também visitar a livraria norte, onde deixavam pacotes para ele, já que o dono era amigo pessoal do escritor. Em vez disso, saí em busca de um café da manhã em meio à maré de cafés com croissants e doces que compõe a confeitaria de Buenos Aires. No final, depois de caminhar e escolher por mais de uma hora, resolvi almoçar cedo, para ter energia e caminhar. Encontrei um restaurante peruano, verdadeiras pérolas gastronômicas da cidade que ninguém ou poucos falam, provavelmente por ser um elemento estrangeiro. E todo mundo sabe como os argentinos são resistentes ao exterior.
O próximo passo foi comprar o SUBE e um T Guide, mapa da cidade, e passar mais de uma hora decifrando-o, antes de desistir e pegar um táxi. Buenos Aires é um labirinto perfeitamente quadrado, não fiquei surpreso que em qualquer curva da esquina eu poderia tropeçar na figura alta e esguia do cronópio, indo ou vindo em alguma missão secreta e impossível, como a sua Phantoms.
Finalmente conheci a livraria e conheci o café. Fiquei surpreso com a ausência de placas em seu nome ou de figuras de papelão que o reproduzissem. Posso dizer que passei um bom tempo em cada lugar, tomando café e checando notícias, e nunca deixei de sentir sua ausência como companheiro fantasma. Onde está você, Cortázar, não consigo te ver?
O segundo dia
Uma boa noite de sono e algumas horas de consultoria na Internet tornaram o quadro muito mais claro. A Plaza Cortázar surgiu como referência vaga, tanto quanto o Café Cortázar, repleto de fotos e frases famosas de seus romances. Lá eu encontrei Cortázar, um recentemente esculpido na imaginação local, tão pródigo em Borges, Storni ou Gardel. Por que não há mais Cortázar, pensei, enquanto vagava por trás de suas pistas misteriosas? Onde estavam as estátuas e as ruas com seu nome, os museus dedicados à sua memória, sua estátua de cera um tanto ridícula no Café Tortoni perto da Plaza de Mayo?
O terceiro dia
Depois de um almoço proeminente e carnívoro e de consultar vários taxistas, entendi: estava procurando Cortázar no lugar errado. A Buenos Aires do cronópio não era essa, mas aquela com que sonhei acordada e que estava escrita nos vários livros da minha mala. Lá estava a cidade que ele perseguia, como sonâmbulos, ao meio-dia.
E quando entendi isso, de repente, soube que poderia empreender o retorno.